Aprendendo a lidar com a realidade, de acordo com Carl Jung
(…) “Da mesma forma que nos inclinamos a supor que o mundo é tal
como o vemos, com igual ingenuidade supomos que os homens são tais como os
figuramos. Infelizmente ainda não existe, aqui, uma Física que nos mostre a
discrepância entre a percepção e a realidade. Embora seja muito maior a possibilidade
de erro grosseiro neste caso, do que nas percepções sensoriais, nem por isto
deixamos de projetar nossa própria psicologia nos outros, com toda a tranquilidade.
Cada um de nós cria, assim, um conjunto de relações mais ou menos imaginárias,
baseadas essencialmente em projeções deste gênero.
Nos neuróticos são até mesmo frequentes
os casos em que projeções fantásticas constituem as únicas vias possíveis de
relações humanas. Um indivíduo que eu percebo principalmente graças à minha
projeção é imago [imagem] ou um suporte de imago ou de símbolo. Todos os
conteúdos de nosso inconsciente são constantemente projetados em nosso meio
ambiente, e só na medida em que reconhecemos certas peculiaridades de nossos
objetos como projeções, como imagines [imagens], é que conseguimos
diferenciá-los dos atributos reais desses objetos. Mas se não estamos
conscientes do caráter projetivo da qualidade do objeto, não temos outra saída
senão acreditar, piamente, que esta qualidade pertence realmente ao objeto.
Todas as nossas relações humanas afundam em semelhantes projeções e quem não
tivesse uma ideia clara deste fato, em sua esfera pessoal, bastar-lhe-ia
atentar aparar a psicologia da imprensa dos países beligerantes. Cum grano
salis veem-se sempre as próprias faltas inconfessadas no adversário. Todas as
polêmicas pessoais disso nos fornecem exemplos eloquentes.
Quem não possuir um raro grau de autocontrole não pairará acima
de suas projeções, mas, na maioria das vezes, sucumbirá a elas, pois o estado
de espírito normal pressupõe a existência de semelhantes projeções. A projeção
dos conteúdos inconscientes é fato natural, normal. É isto o que cria nos
indivíduos mais ou menos primitivos aquela relação característica com o objeto,
que Lévy-Bruhl designou, com acuidade, pelo nome de “identidade mística” ou
“participação mística”. Assim, todo contemporâneo normal que não possua um
caráter reflexivo acima da média, está ligado ao meio ambiente por todo um
sistema de projeções inconscientes. O caráter compulsivo de tais relações (ou
seja, precisamente o seu aspecto “mágico” ou “místico-imperativo”) permanece
inconsciente para ele, “enquanto tudo caminhar bem”. Mas logo que se manifestam
distúrbios paranoides, todas estas vinculações inconscientes de caráter
projetivo aparecem sob a forma de outras tantas vinculações compulsivas,
reforçadas, em geral’ por materiais inconscientes que, notemo-lo, constituíam,
já durante o estado normal, o conteúdo dessas projeções. Por isto, enquanto o
interesse vital, a libido, puder utilizar estas projeções como pontes
agradáveis e úteis, ligando o sujeito com o mundo, tais projeções constituem
facilitações positivas para a vida. Mas logo que a libido procura seguir outro
caminho e, por isto, começa a regredir através das pontes projetivas de outrora,
as projeções atuais atuam então com os maiores obstáculos neste caminho,
opondo-se, com eficácia, a toda verdadeira libertação dos antigos objetos.
Surge então um fenômeno característico: o indivíduo se esforça por desvalorizar
e rebaixar, o máximo possível, os objetos antes estimados, a fim de poder
libertar deles a sua libido.
Como, porém, a precedente identidade repousa sobre a projeção de
conteúdos subjetivos, uma libertação plena e definitiva só pode realizar-se, se
a imago refletida no objeto for restituída, juntamente com sua significação, ao
sujeito. Produz-se esta restituição, quando o sujeito toma consciência do
conteúdo projetado, isto é, quando reconhece o “valor simbólico” do objeto em
questão. É certo que essas projeções são bastante frequentes e tão certo quanto
o desconhecimento de sua natureza. Sendo assim, não devemos nos admirar de que
as pessoas desprovidas de senso crítico admitam, a priori, e como evidente à
primeira vista, que, quando se sonha com o Senhor X, esta imagem onírica
denominada “Senhor X” é idêntica ao Senhor X da realidade. Este preconceito
está inteiramente de acordo com a ausência geral de espírito crítico que não vê
diferença entre o objeto em si e a ideia que se tem dele. Considerada sob o
ponto de vista crítico, a imagem onírica — ninguém o pode negar — guarda apenas
uma relação exterior com o objeto. Na realidade, porém esta imagem é um
complexo de fatores psíquicos que se formou espontaneamente — embora sob o
influxo de certos estímulos exteriores — e, por consequência, se compõe,
essencialmente, de fatores subjetivos, característicos do próprio indivíduo e
que muitas vezes não têm absolutamente nada a ver com o objeto real.
Compreendemos sempre os outros como a nós mesmos, ou como procuramos
compreender-nos. O que não compreendemos em nós próprios, também não o
compreendemos nos outros. Assim, por uma série de motivos, a imagem que temos
dos outros é, em geral, quase inteiramente subjetiva. (…)”
Carl Jung, em “A Natureza da Psique”
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